domingo, 6 de abril de 2014

Sem ti, contigo

Hoje, no que dizem os médicos ser o teu último dia de vida, apetece-me dizer-te pequenas coisas que cá ficaram embrulhadas, embaladas em pele, guardadas em meu pranto ao longo desses anos de saudade e de solidão. Fazes-me sentir muito mais sóbrio agora ao teu lado novamente, ainda que neste lúgubre leito de unidade de terapia intensiva. Apercebo-me só neste instante que me preparaste a adentrar o campo de batalhas com alguma segurança. Ensinaste-me a abrir os olhos no escuro e não temer o desconhecido, o não visível. Fizeste-me sentir, com o peso da ausência, a dura realidade do abandono, da perda, do desencontro de estações. Mostraste-me o quanto eu tinha de aprender para sentir um pouco de liberdade, experimentar da leveza de espírito que tanto reclamavas a ti. Só agora aqui, agarrado às tuas mãos, com afinco e fé, com amor e menos receio, alumia-me a dor que traduz esta despedida. Compreendo-te em cada segundo que se passou - porque deles não existiu um sequer em que meu pensamento tenha fugido de ti. E mesmo nas tuas últimas horas de vida, vejo que consegues desenhar em tua face um quê de prosperidade, essa plenitude que sempre alcançaste sem esforço. A tua beleza é sem pressa, é dona de si, é sem vaidade. Nunca esquecerei daquele mês de abril em que nos cruzamos naquela encantadora exposição literária do Guimarães Rosa. Indaguei-te ligeiramente pra onde nos atrai o azul? e respondeste-me com um sorriso faceiro que felicidade se acha em horinhas de descuido. Estava feito. Não demorou para descobrirmos o tanto de tanto que havíamos de dialogar, de viver, de experimentar. Apresentaste-me um mundo novo, colorido e furtivo, tal qual tela de aquarela, como as gravuras de Tarsila, por nós tanto seduzidas. Descobri em ti a intensidade do prazer de gostar de alguém sem exigências. E envolveste-me de olhos fechados. Recordo-me bem que gostavas de dançar ao ritmo cubano que tocava aos domingos na gafieira da esquina treze: aqueles infindáveis alvoroços de gente a gargalhar, a se roçar no calor da felicidade eufórica de momento, em que eu me equilibrava em corda bamba, sem olhar para baixo a nortear a altura a que me elevavas em perigo. Apaixonava-me por ti mais e mais. Eras sangue pulsando na desventura dos dias, vagueando sorrateiro dentro de mim. Sorrias bastante, sorrias para o mundo, para qualquer coisa que passasse lá fora, para as crianças no batente da calçada, para as idas e vindas do oxigênio que te bombeavam ofegantes os pulmões naqueles dias de forte sol que tanto te agradavam. De mãos dadas saíamos a passear, abraçávamo-nos sob a brisa do mar e bronzeávamos nossos corpos sem com nada se preocupar. Outras vezes íamos ao cinema, dividíamos a pipoca, os chocolates e os risos. Criavas o cenário a detalhes que te custavam até lágrimas fora de hora, não te importavas com o tempo gasto, nem com o excesso das faltas que eu marcava pacientemente no calendário. Era teu para ti, somente a ti. E tu, nunca foste de ninguém. Foste, sim, a criatura mais livre que me existiu. E me deixaste sem sequer uma palavra de adeus. Deixaste-me somente as palavras doces como herança, de seu sutil encantamento, da delicadeza perdida que aflorava nas horas vagas. Escrevi-te longas cartas, já depois de alguns outonos, que não saíram da escrivaninha, amarrotaram-se nas gavetas que se tornaram insuficientes e cheias demais. Até que um dia nelas ateei fogo e pôs-se abaixo todo aquele castelo de palavras órfãs. O calor consumiu as minhas tenras declarações, meus pedidos de desculpas, meus pequenos e raros arrependimentos, minhas faltas de razão. Não sabia pra que lado havias ido. Beijaste-me a testa e te foste, engarrafando-se num comboio pras bandas de lá. De lá de onde não mais voltaste nos dias que se seguiram, de lá de onde te esquivaste à bússola do meu coração. E tantos anos depois apareces de volta, já assim, quase sem vida, feito mar sem ondas, feito luz difusa num túnel sem fim. Surpreendo-me por não guardar sequer um fio de rancor, uma falha ira, uma mágoa pungente. Neste presente já brando, faço-me teu outra vez. Não mais me comovendo com o que pode ter sido perdido. Se perdemos algo, já se foi. Ensinaste-me que as perdas são encontros do outro lado, que vêm de nós mesmos, das escolhas, das vontades que seguimos. E foi com a tua falta de comparência que ergui o norte acerca de tudo o que circunda os labirintos da vida. Perdi-te e reencotrei-te. Agora tenho a certeza de que sempre estivemos juntos e de que é preciso sofrer depois de ter sofrido, e amar, e mais amar, depois de ter amado. Vai e descansa em paz, meu amor.
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Canção: Sem você, Chico Buarque
Letra:
Sem você
Sem amor
É tudo sofrimento
Pois você
É o amor
Que eu sempre procurei em vão
Você é o que resiste
Ao desespero
E à solidão
Nada existe
E o tempo é triste
Sem você
Meu amor
Meu amor
Nunca te ausentes de mim
Para que eu viva em paz
Para que eu não sofra mais
Tanta mágoa assim
No mundo sem você

terça-feira, 23 de julho de 2013

A escrita, minha mulher

Há coisas sem nome que ficam aqui dentro do quarto e se perpetuam pelas paredes, pelos objetos, pelo chão, pelo ar que aqui ainda parece existir. Na clausura das lembranças, esforço-me para rememorar os nomes daquelas coisas bonitas e tristes que passavam por cá noutros tempos. Escritas, grafadas e amalgamadas como se perpétuas fossem. A ideia de tempo aparenta-se vazia, tão quanto o próprio tempo e sua contagem sem fim. Com ele, passam a exsurgir os questionamentos da existência e do sentido daquelas coisas, para mim agora inominadas, mas ainda especiais e providas de sentido. Assim, como qualquer primavera. Coisas e coisas e coisas. Palavras e palavras e palavras. Ditas e não ditas. Que fogem, somem e me reencontram, mas que logo novamente se vão e se esvaem como a fumaça do cigarro que trago taciturnamente. Há pouco, detinha-me num pedaço de papel insanamente, ébrio de paixão pelos vícios que deixei na mesa da sala, na mesa de bar. Eram versos perdidos, soltos, abandonados. Besteiras a me enganar. E não há tortura maior do que escrever um texto órfão. Igual a acometer-se no calor do desejo e dele não fruir, queimando-se até que tudo não passe de um sonho. Covardemente, atribuo a culpa do hiato à falta de memória, do efêmero léxico que me separa do eterno e profundo amor às coisas sem nome. Penso que, de vil maneira, o tempo ludibria os pensamentos, a protrair as palavras ritmadas e cúmplices, de modo a deixá-las confusas e cheias de nada. Atônitas pelo regresso. E como hei de escrever o que pede para nascer em forma de palavra? Como evadir-me daqui, deste quarto trancado e asfixiante, senão com cicatrizes nas trêmulas mãos? Cairei no esquecimento dos amantes desesperados, clamando humildemente por mais vida e mais coisas sem nome. Morrerei neste sofrimento, nesta súplica, com a ansiedade de quem vive a procurar estrelas uniformes nas brancas paredes. Manterei os olhos abertos, para quando acordar, lembrar-me de cada palavra deste delírio arrependido. Esperando-a, ainda, de novo e sempre. Haja o que houver. Ela há de voltar.

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Canção: Palavra de mulher, Chico Buarque
Letra:
Vou voltar
Haja o que houver, eu vou voltar
Já te deixei jurando nunca mais olhar pra trás
Palavra de mulher, eu vou voltar
Posso até
Sair de bar em bar, falar besteira
E me enganar
Com qualquer um deitar
A noite inteira
Eu vou te amar

Vou chegar
A qualquer hora ao meu lugar
E se uma outra pretendia um dia te roubar 
Dispensa essa vadia
Eu vou voltar
Vou subir
A nossa escada, a escada, a escada, a escada
Meu amor, eu vou partir
De novo e sempre, feito viciada
Eu vou voltar

Pode ser
Que a nossa história
Seja mais uma quimera
E pode o nosso teto, a Lapa, o Rio desabar
Pode ser
Que passe o nosso tempo
Como qualquer primavera
Espera
Me espera
Eu vou voltar 

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

A ilusão de Carolina

Atirou-se por inteira, sob o palpitar brusco do seu peito, no regozijo da crença de que dispunha de uma nova tela, sobre a qual as tonalidades daquela antiga aquarela voltariam a vibrar. Esboçou alguns traços suaves em torno do branco que ganhava, sorrateiramente, o colorido de sua imaginação e armou-se toda em poesia, rimando as vestes e os cheiros em volta de si, como num jardim bem cuidado. Aceitou a vaidade sob o fundamento da espera, sob a ansiedade da expectativa, sob a vontade de segurança diante do que ainda era incerto. Suspirava com os sinais, mínimos que fossem, de palavras bonitas, de piadas sem graça, de promessas insensatas. Embalou-se, então, em prognósticos, distanciando o seu olhar em qualquer horizonte, sedenta por concretizar os seus sonhos prosaicos. As suas expedições desbravadas resumiam-se às quentes tardes, em que se sentava ao chão e se punha a bordar desenhos infantis em sua pele, chegando a arranhar-se, a criar marcas em seu próprio corpo, tamanha era a intensidade dos seus anseios. E já não se alimentava como antes, o seu apetite era apenas de sentimento. Não importava a poeira acumulada nos cantos, o vento forte que derrubava o jarro de flores, o gato de estimação que morria de fome. Tudo em volta era só verso, numa materialidade intocável. E naquele tempo de esperas e inércia, findou por encontrar a solidão, tão quase sinônima da ilusão. Não havia, pois, mais lugar para ela. Esquecera de si, naquela dança estranha que protagonizava num salão escuro, sem plateia, sem paredes, sem chão. Sentiu-se perdida, mas sem forças para querer fazer o caminho de volta. Seguia como um pássaro preso, sem acaso, em seu abstrato coração. Em seu valor, sem mais razões, recolhera-se ao seu mundo. Cegou-se em si pelo egoísmo, pela irretocável frustração. E teimosa que só ela, mesmo prostrada à janela, nada viu: nem a rosa que nasceu, nem o mundo que sambou, nem a estrela que caiu.
 
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Canção: Carolina, Chico Buarque
Letra:
Carolina
Nos seus olhos fundos
Guarda tanta dor
A dor de todo esse mundo
Eu já lhe expliquei que não vai dar

Seu pranto não vai nada ajudar
Eu já convidei para dançar

É hora, já sei, de aproveitar
Lá fora, amor,
Uma rosa nasceu,
Todo mundo sambou,
Uma estrela caiu
Eu bem que mostrei sorrindo

Pela janela, ói que lindo
Mas Carolina não viu

Carolina,
Nos seus olhos tristes
Guarda tanto amor
O amor que já não existe,
Eu bem que avisei,
vai acabar
De tudo lhe dei para aceitar
Mil versos cantei pra lhe agradar

Agora não sei como explicar
Lá fora, amor
Uma rosa morreu
Uma festa acabou
Nosso barco partiu
Eu bem que mostrei a ela

O tempo passou na janela
Só Carolina não viu

domingo, 18 de novembro de 2012

O que não tem tamanho


Um minuto de intensidade. O coração acelera, bate forte, pulsa frenético e parece não mais caber cá, em meu peito. Ao arrepio da razão, um pensamento de como e quando e onde estaria a felicidade guardada e usada pela aflição do que e de quem me faz bem. O movimento que não cessa, um ato, um verso, uma fotografia e tudo em desatino, alojado em mim como combustível para o extermínio da opacidade. À peculiaridade de cada parte, de cada víscera, o corpo inteiro responde, numa folia doentia, precoce e resoluta para a qual inexiste remédio. A pele enrubesce, feito flor menina, que brota e vive para encantar os olhos de quem se enclausura à mercê de um perturbado sono. Num processo de alquimia, tudo roga por cor e ação, na junção dessas palavras que chegam até ele pelo próprio escárnio dos quebrantos de que se rege ao reverso. À revelia de todos os unguentos, confesso, pelo que me resta, não saber viver sem essa vibração, sem essa energia, sem esse calor que me sufoca e me faz rodopiar no tempo, declamando coisas que já não têm qualquer jeito de dissimular. Ontem, hoje e amanhã, fundidos num só instante, sob desacato, a serviço da desordem do sentimento que vaga leveza e conclama agonia, em tudo me perecendo, em tudo me devastando, em tudo me suplicando, a me atraiçoar. Essas coisas sem nome, de que tanto gosto, esses ditos sem cansaço, de que tanto faço uso, perfilam-se sem sincronia para dizer do azul de que são formadas as paredes do meu instinto de mendigo, artista e amante amador. Tudo, tudo, tudo em seu perfeito papel de não se encaixar num conceito, numa medida, numa receita ou num limite qualquer. O que queima, arde e violenta. O que se perde, se encontra e se perfaz. O que desgoverna, desinibe e não cansa. O que não alivia, não sacia e não fenece. O que foi, é e será: sem certeza, sem sentido e sem juízo.
 
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Canção: O que será (à flor da pele), Chico Buarque
Letra:
O que será que me dá
Que me bole por dentro, será que me dá
Que brota à flor da pele, será que me dá
E que me sobe às faces e me faz corar
E que me salta aos olhos a me atraiçoar
E que me aperta o peito e me faz confessar
O que não tem mais jeito de dissimular
E que nem é direito ninguém recusar
E que me faz mendigo, me faz implorar
O que não tem medida, nem nunca terá
O que não tem remédio, nem nunca terá
O que não tem receita

O que será que será
Que dá dentro da gente e que não devia
Que desacata a gente, que é revelia
Que é feito uma aguardente que não sacia
Que é feito estar doente de uma folia
Que nem dez mandamentos vão conciliar
Nem todos os ungüentos vão aliviar
Nem todos os quebrantos, toda alquimia
Que nem todos os santos, será que será
O que não tem descanso, nem nunca terá
O que não tem cansaço, nem nunca terá
O que não tem limite

O que será que me dá
Que me queima por dentro, será que me dá
Que me perturba o sono, será que me dá
Que todos os ardores me vêm atiçar
Que todos os tremores me vêm agitar
E todos os suores me vêm encharcar
E todos os meus nervos estão a rogar
E todos os meus órgãos estão a clamar
E uma aflição medonha me faz suplicar
O que não tem vergonha, nem nunca terá
O que não tem governo, nem nunca terá
O que não tem juízo

domingo, 14 de outubro de 2012

De hoje para amanhã

Nós dois, sentados num banco, Lagoa, Rio de Janeiro. Quietos, entre olhares de soslaio e expressões de canto de boca. Final de tarde com um arrebol de cegar-nos em beleza e fascínio. Ao chegarem-me as palavras, comecei a narrar as minhas paixões, as minhas mais bonitas crenças, os meus planos para daqui a dez anos. Ali, na tua companhia, perto do teu cheiro e da tua rara e serena voz. Ali, onde, num forte pulsar de inspiração, pus-me a descrever o sentimento de hoje que fica sempre para amanhã:

- De mais a mais, o meu amor não tem urgências. Ele é feito de fragmentos, de epílogos, de singularidades, com risos soltos e ímpares, dores de peito abarrotado e vontades intermináveis de se fazer transitivo quando junto. Ele é feito de esperas, de guarnições, de passatempos que se apuram por milênios e milênios até chegarem no ponto certo de se consumir. Ele é sem pressa, senhor de todas as horas, feito poema curto e incógnito, em que se lê e relê à falta de afobação e ao excesso de serenidade. E como fruto de toda paciência, molda-se numa exigência peculiar das coisas submersas: conforma-se como líquido à forma em que é posto, sem perder a consistência de um sólido que impõe sua existência à essência de sua constituição. Conjetura o futuro a partir dos vestígios que colhe. Constrói-se lentamente, à medida que se deixa acontecer. Firme, ingênuo e inconsciente. Até chegar à maturidade, em que se faz silente, à beira de tudo o que é pele e sangue e carne e coração. Calado, guarda-se em si pelo instante que julgar condizente, à espera de um dia em que se revigore e saia da armadura, do fundo do armário, da posta que sempre resta à margem das lágrimas de toda espécie. E num eloquente passar de eras, não se deixa decifrar, entre mentiras e retratos, fazendo eco pelas passagens de sabedoria, pelos desvãos das almas poéticas, pelos escaninhos de cartas de palavras antigas. O meu amor é mais ou menos assim: vem, fica, vai e domina o tempo, se faz inteiro quando vivo e se permite, com todas as caras que possui, se diz dele e nada além. E agora, aqui, ele significa o quiçá dos futuros amantes que poderemos ser.

Apertei, então, a tua mão e pensei: ainda bem que nada é pra já.
 
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Canção: Futuros amantes, Chico Buarque
Letra:
Não se afobe, não
Que nada é pra já
O amor não tem pressa
Ele pode esperar em silêncio
Num fundo de armário
Na posta-restante
Milênios, milênios
No ar

E quem sabe, então
O Rio será
Alguma cidade submersa
Os escafandristas virão
Explorar sua casa
Seu quarto, suas coisas
Sua alma, desvãos

Sábios em vão
Tentarão decifrar
O eco de antigas palavras
Fragmentos de cartas, poemas
Mentiras, retratos
Vestígios de estranha civilização

Não se afobe, não
Que nada é pra já
Amores serão sempre amáveis
Futuros amantes, quiçá
Se amarão sem saber
Com o amor que eu um dia
Deixei pra você