Hoje, no que dizem os médicos ser o teu último dia de vida, apetece-me dizer-te pequenas coisas que cá ficaram embrulhadas, embaladas em pele, guardadas em meu pranto ao longo desses anos de saudade e de solidão. Fazes-me sentir muito mais sóbrio agora ao teu lado novamente, ainda que neste lúgubre leito de unidade de terapia intensiva. Apercebo-me só neste instante que me preparaste a adentrar o campo de batalhas com alguma segurança. Ensinaste-me a abrir os olhos no escuro e não temer o desconhecido, o não visível. Fizeste-me sentir, com o peso da ausência, a dura realidade do abandono, da perda, do desencontro de estações. Mostraste-me o quanto eu tinha de aprender para sentir um pouco de liberdade, experimentar da leveza de espírito que tanto reclamavas a ti. Só agora aqui, agarrado às tuas mãos, com afinco e fé, com amor e menos receio, alumia-me a dor que traduz esta despedida. Compreendo-te em cada segundo que se passou - porque deles não existiu um sequer em que meu pensamento tenha fugido de ti. E mesmo nas tuas últimas horas de vida, vejo que consegues desenhar em tua face um quê de prosperidade, essa plenitude que sempre alcançaste sem esforço. A tua beleza é sem pressa, é dona de si, é sem vaidade. Nunca esquecerei daquele mês de abril em que nos cruzamos naquela encantadora exposição literária do Guimarães Rosa. Indaguei-te ligeiramente pra onde nos atrai o azul? e respondeste-me com um sorriso faceiro que felicidade se acha em horinhas de descuido. Estava feito. Não demorou para descobrirmos o tanto de tanto que havíamos de dialogar, de viver, de experimentar. Apresentaste-me um mundo novo, colorido e furtivo, tal qual tela de aquarela, como as gravuras de Tarsila, por nós tanto seduzidas. Descobri em ti a intensidade do prazer de gostar de alguém sem exigências. E envolveste-me de olhos fechados. Recordo-me bem que gostavas de dançar ao ritmo cubano que tocava aos domingos na gafieira da esquina treze: aqueles infindáveis alvoroços de gente a gargalhar, a se roçar no calor da felicidade eufórica de momento, em que eu me equilibrava em corda bamba, sem olhar para baixo a nortear a altura a que me elevavas em perigo. Apaixonava-me por ti mais e mais. Eras sangue pulsando na desventura dos dias, vagueando sorrateiro dentro de mim. Sorrias bastante, sorrias para o mundo, para qualquer coisa que passasse lá fora, para as crianças no batente da calçada, para as idas e vindas do oxigênio que te bombeavam ofegantes os pulmões naqueles dias de forte sol que tanto te agradavam. De mãos dadas saíamos a passear, abraçávamo-nos sob a brisa do mar e bronzeávamos nossos corpos sem com nada se preocupar. Outras vezes íamos ao cinema, dividíamos a pipoca, os chocolates e os risos. Criavas o cenário a detalhes que te custavam até lágrimas fora de hora, não te importavas com o tempo gasto, nem com o excesso das faltas que eu marcava pacientemente no calendário. Era teu para ti, somente a ti. E tu, nunca foste de ninguém. Foste, sim, a criatura mais livre que me existiu. E me deixaste sem sequer uma palavra de adeus. Deixaste-me somente as palavras doces como herança, de seu sutil encantamento, da delicadeza perdida que aflorava nas horas vagas. Escrevi-te longas cartas, já depois de alguns outonos, que não saíram da escrivaninha, amarrotaram-se nas gavetas que se tornaram insuficientes e cheias demais. Até que um dia nelas ateei fogo e pôs-se abaixo todo aquele castelo de palavras órfãs. O calor consumiu as minhas tenras declarações, meus pedidos de desculpas, meus pequenos e raros arrependimentos, minhas faltas de razão. Não sabia pra que lado havias ido. Beijaste-me a testa e te foste, engarrafando-se num comboio pras bandas de lá. De lá de onde não mais voltaste nos dias que se seguiram, de lá de onde te esquivaste à bússola do meu coração. E tantos anos depois apareces de volta, já assim, quase sem vida, feito mar sem ondas, feito luz difusa num túnel sem fim. Surpreendo-me por não guardar sequer um fio de rancor, uma falha ira, uma mágoa pungente. Neste presente já brando, faço-me teu outra vez. Não mais me comovendo com o que pode ter sido perdido. Se perdemos algo, já se foi. Ensinaste-me que as perdas são encontros do outro lado, que vêm de nós mesmos, das escolhas, das vontades que seguimos. E foi com a tua falta de comparência que ergui o norte acerca de tudo o que circunda os labirintos da vida. Perdi-te e reencotrei-te. Agora tenho a certeza de que sempre estivemos juntos e de que é preciso sofrer depois de ter sofrido, e amar, e mais amar, depois de ter amado. Vai e descansa em paz, meu amor.
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Canção: Sem você, Chico Buarque
Letra:
Sem você
Sem amor
É tudo sofrimento
Pois você
É o amor
Que eu sempre procurei em vão
Você é o que resiste
Ao desespero
E à solidão
Nada existe
E o tempo é triste
Sem você
Meu amor
Meu amor
Nunca te ausentes de mim
Para que eu viva em paz
Para que eu não sofra mais
Tanta mágoa assim
No mundo sem você
Sem você
Sem amor
É tudo sofrimento
Pois você
É o amor
Que eu sempre procurei em vão
Você é o que resiste
Ao desespero
E à solidão
Nada existe
E o tempo é triste
Sem você
Meu amor
Meu amor
Nunca te ausentes de mim
Para que eu viva em paz
Para que eu não sofra mais
Tanta mágoa assim
No mundo sem você